"A República contra o Socialismo", por J. Mendes Rosa

17-07-2010 18:19

A REPUBLICA CONTRA O SOCIALISMO

Bosquejo de um conflito secular (1875-1974)


O pior que nos pode acontecer é sermos amanhã república ...
ANTERO DE QUENTAL, Cartas


Numa época em que se pretende enunciar os princípios republicanos e os socialistas como sendo partes naturalmente integrantes do mesmo edifício político (com manifesto abuso, diga-se desde já), urge como nunca explanar em traços necessariamente céleres, condenados quase à aridez da simples enunciação, o que foi o desavindo percurso perpetrado por cada dessas escolas ideológicas, ambas nascidas sob o úbere pendão das ideias filosóficas posteriores ao último quartel do século XVIII, mas que não são - longe disso - defeníveis uma pela outra. Em Portugal, republicanismo e socialismo entram de mãos dadas, embora tardiamente, - com um século de atraso em relação à Europa. Os mais directos responsáveis pela sua introdução no tecido intelectual português, assinalaram o feito com um ciclo de conferências que ficou exactamente conhecido por Conferências do Casino (1871). Antero, o maior vulto dessa novel escola política (socialista e republicana), secundado por alguns mais, cedo se aperceberia da natureza autónoma do ideal do regime e a do sistema político-económico almejado, e bem assim da necessidade de separar as águas adstritas a um e a outro. Assim, a clivagem república/socialismo pode ser consubstanciada na disjunção Teófilo Braga/Antero de Quental e verifica-se «a partir do momento em que a Geração setecentista divide o seu caudal, separando-se em dois leitos distintos, o do Partido Socialista (fundado em 1875) e o do Partido Republicano (fundado um ano depois)»(1).
É assim que ainda mal nado, o socialismo português se divorcia do republicanismo e enceta uma clara aproximação ao até aí combatido regime monárquico. Esse divórcio era ditado pelo mesmo Antero em carta dirigida a Oliveira Martins: « A fantasia republicana está desfeita de todo o nosso grupo socialista e dou por isso graças aos deuses. É necessário, de toda a necessidade, que quebremos com os republicanos e eu estou resolvido a fazê-lo»(2). Logo a seguir, declarava a sua «completa isenção do movimento republicano»(3). Em 1885, o seu descrédito nos decantados benefícios da instituição republicana para suprimento das minguas económicas e sociais do País, vai mais longe: « (...) Está iminente a bancarrota e uma tremenda crise social; a proclamação da República não só não remediaria esses grandes males (...), mas trazia uma complicação e elemento de desordem, como ainda em 1873 se viu em Espanha»(4).
Oliveira Martins, plumitivo de credo monárquico, infatigável teórico da conciliação da doutrina robustecimento do Poder Real com um Socialismo de Estado5, seria a mais bela expressão dessa nova aliança entre o ideário socialista temperado e o regime sete vezes secular. Mesmo depois de ter passado fugazmente pelas esferas do poder, onde o seu sonho de reconstrução nacional esbarrou no imobilismo de um constitucionalismo aferrado e inerte, não cedia a confusões, depois de namorado pelos republicanos para seu deputado pelo Porto: -« E quem lhes disse aos senhores que sou republicano? Não sou, sou socialista.» E acrescentava: «República, anarquia, Castela»(6). E se assim era no plano intelectual, também na esfera da acção política se verificou a dissensão, acrescida da perseguição que os republicanos começaram a mover aos movimentos socialistas e sindicais. Em 1885, o Partido dos Operários Socialistas de Portugal acha-se ferido de morte, e mau grado Azedo Gneco tivesse fundado o Partido Socialista Português (1895), e tendo adoptado por estratégia de sobrevivência uma aproximação aos republicanos em 1901, depois de acesa controvérsia (Luís Figueiredo opôs-se terminantemente e o rompimento definitivo dá-se em 1907), o sucesso da táctica era impedido por «uma forte desconfiança em relação ao Partido Republicano», como escreve António Ventura (7).
Com a fundação do Partido dos Operários Socialistas de Portugal, encrudesce e ganha contornos inauditos de animadversão o combate aberto que o Partido Republicano move aos socialistas. Estes, conhecerão um único e fervoroso coadjuvante: El-Rei D. Manuel II. O trecho da carta que de seguida expomos (dirigida pelo monarca a Venceslau de Lima em 15.6.1909), é a esse respeito bastante esclarecedora: «(...) o Partido Socialista encontra-se desorganizado e dividido em fracções desde 1891. O Partido Republicano tem-lhe feito uma guerra de morte e arranjou sempre coisas de maneira que o partido se encontrasse sempre em desacordo (...). O Partido Socialista encontra-se há poucos dias completamente unido: a pessoa que conseguiu isso é o Alfredo Aquiles Monteverde (...). Eu tenho-me interessado muito há já bastante tempo por esta questão, que tenho vindo seguindo e ajudando».
Feitas as diligências régias para que o Partido Socialista ganhasse uma compleição de poder, estudado o respectivo programa enviado por Gneco, Monteverde dirige-se destarte ao Rei: «Venho agradecer reconhecidíssimo o bilhete e a carta que V.M. houve por bem enviar-me e o interesse que V.M. continua a tomar pelos seus operários. Mal sabem eles do alto patrocínio que tão eficazmente os está auxiliando neste momento».(8)
Após o advento da República, o Partido Socialista, no seu Manifesto, perfila-se como oposição e não tem pejo em proclamar: «O Partido Socialista entende que deve ser lançada aos actuais dirigentes e aos elementos mais preponderantes da República Portuguesa a inteira responsabilidade por todas as perturbações de ordem ultimamente havidas e por todas as que parecem prestes a haver ...» (9).
A repressão republicana contra o operariado, revestiu-se de contornos dignos da mais acerba das tiranias. Em 1912, na Greve Geral de Lisboa, os grevistas foram duramente reprimidos e submetidos a degradantes prisões. Um ano depois, o democrático (!) «governo de Afonso Costa proibiu o cortejo e o comício do 1° de Maio...»(10).

Meses antes, o Anti-Cristo de Seia (o epíteto é do seu ex-colega de partido Cunha e Costa) assinava no jornal O Mundo um artigo em que demonstrava descrer no futuro do socialismo e bem assim no movimento das classes operárias e sindicatos.(11)
E dando vazante à ideia de enfrear o operariado, conta Carlos Malheiro Dias que os proletários acusaram a «república de ter mandado fuzilar os operários grevistas de Setúbal como nunca se tinha feito no tempo da monarquia; (...) de decretar uma lei eleitoral mais reaccionária que qualquer das que estiveram em vigor no antigo regime» (12).
Em 1914 é fundada a União Operária Nacional, que o governo de então logo se apressou a extinguir, sendo reorganizada em 1917. Em Maio desse ano, como protesto contra a falta de pão em Lisboa, quatro milhares de pessoas manifestaram-se no Rossio e a Guarda Nacional Republicana recebeu ordens governamentais para dispersar os civis pela violência. O confronto saldou-se em dezenas de mortos e 547 prisões (13). Mas o conflito entre republicanos e socialistas, não se confinaria à I República (onde de resto, nas diversas legislaturas, apenas foi eleito um máximo de dois deputados socialistas; o equivalente a deputados miguelistas). Na II República foi o que se sabe; o socialismo seria banido oficialmente do solo português e o sindicalismo decretado, tal como na I República, adverso ao Estado. Só após o 25 de Abril os socialistas se puderam organizar livremente, como queria 65 anos antes, o Rei D. Manuel II.
Por este apontamento poderemos ver que socialismo e república, andaram desavindos durante mais de cem anos, e só muito recentemente se reconciliaram...»

 

Notas ao texto:

1 João Mediria, Antera e Teófúo: A Águia e a Aranlia, in História de Portugal, IX, Ediclube, 1995, p.99.
2 Cartas Inéditas de Antero de Quental a Oliveira Martins. I. Univ. de Coimbra, Coimbra, 1931, pp. 17-18. }Ibidem,p. 113.
4 Carta a S. Costa Botelho de 1.VIII. 1885, Canas E, p. 746.
5 Cfr. entre outros, O Socialismo na Monarquia. Oliveira Martins e a Vida Nova, F. A. Oliveira Martins, Parceria A. Ma. Pereira, Lx., 1944.
6 Raul Brandão, Vale de Josafat, Seara Nova, Lx., 1933, p. 80.
7 O Socialismo Português in História de Portugal, dir. João Medina, vol. X, p. 273.
8 Documentos Políticos Encontrados nos Palácios Reais depois da Revolução de 5 de Outubro de 1910, Imprensa Nacional de Lisboa, 1915.
9 Manifesto do Partido Socialista aos dirigentes da Governação na República Portuguesa, 31 de Agosto de 1911, reproduzido por Raul Brandão, Memórias, U, 2a Ed., 1925, Aillaud & Bertrand, pp. 161-162.
10 César nogueira, Notas para a História do Socialismo em Portugal, vol. II, Lx., 1966.
11 Afonso Costa, Socialismo e Catolicismo, in O Mundo. 27.1.1913, reproduzido por A. H. Oliveira Marques, Afonso Costa, Arcádia, 1976, pp. 362-366.
12- Carlos Malheiro Dias, Do Desafio à Debandada. I, Clássica Ed., Lx., 1912, p. 228. 

13-Cfr. Diário de Notícias, edições de 19 e 20 de Maio de 1917.
 


J. Mendes Rosa, in Boletim da Real Associação do Algarve, nº 2 de 1999

 

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